Bagunça


E foi quando ela, com sua voz entorpecida de ansiedade, me convidou para entrar.
Se acomode, não repare a bagunça; e não notei bagunça nenhuma que fosse menor que a minha. 
Eu nunca soube quando iria sair.

Perdi a conta dos lenços manchados de lágrimas, as roupas sujas e os utensílios jogados, despretensiosamente, num canto qualquer.
Eu olhei-a no fundo de seus olhos e sorri. Ela, depois de muito tempo, sorriu também.
Eu nunca soube quando iria sair.

Passamos madrugadas rindo, e enquanto ela dormia, eu tentava arrumar, pouco a pouco, aquela bagunça. Encontrava entre os frascos de perfumes e embalagens de chocolate, vislumbres de suas memórias, suas sensações mais profundas, pelas quais me apaixonei de instantâneo.
Eu não queria e não sabia quando iria sair.

A mixórdia que se fazia seu quarto me seduzia, confortava. Me vi apaixonado pela miscelânea de objetos e da satisfação em organizá-los. Era um quebra-cabeça que se transformava numa obra expressionista. O cubismo picassiano em um viés fauvista; a loucura dos surrealistas e a obsessão dos renascentistas. Ela era tudo isso, talvez um pouco mais. Deus, como eu a amava.
Eu nunca soube quando iria sair.

Mas, para minha surpresa, o quarto nunca estava, essencialmente, arrumado. A cada retorno meu havia algo a se trabalhar. Passei a achar aquilo, no mínimo, preocupante. Não deveria tê-la repreendido por tamanha anarquia, mas foi o que fiz, e os lenços das lágrimas passaram a ser mais frequentes. Lágrimas que eu viria a limpar... Por pouco tempo.
Eu tinha medo, mas nunca soube quando iria sair.

Havia dias que nos beijávamos apaixonadamente em meio a balbúrdia. E o seu perfume, a maciez da sua pele, o sabor de seu beijo, a textura dos seus cabelos, a delicadeza em seus olhos... Deus, como eu a amava.
Eu definitivamente não queria sair dali.

As coisas passaram a mudar. A bagunça era tamanha que minha locomoção era dificultosa, e eu não era capaz de vê-la em meio as montanhas de objetos randômicos. O lugar era fétido, mofado. Encontrei em um dos cantos do quarto uma coleção de CDs. Músicas que eu havia mostrado e dado de presente. Ali, abandonados. Por vezes ela escrevia as letras das músicas pelas paredes, igualmente bagunçadas. Eu me vi absorto em seus acúmulos.
Eu nunca soube quando iria sair.

Quando voltei, no outro dia. Encontrei a porta trancada.
Eu a chamava, batia violentamente contra porta, berrava com todas as minhas forças.
Nunca soube quando alguém viria me atender.

E isso se transformou em rotina.
Nunca soube quando alguém chegaria a ouvir.

Cheguei lá um pouco mais cedo que de costume, e flagrei as luzes acesas. Me aproximei numa lentidão inconcebível até que aproximei meu ouvido na madeira da porta.
Um frio cortante atravessou toda a extensão do meu corpo.
Havia uma segunda voz, ali com ela, masculina, grave.
Eu queria fugir. Não havia mais o que ouvir ali... Mas minha cabeça me pareceu grudada à madeira com uma firmeza inexorável.
Com mais atenção, pude ouvir, ao fundo, uma canção.
Uma das inúmeras canções que eu havia mostrado, tocando, uma após a outra.
Bati contra a porta. Surtei. Não lembro quantas vezes esmurrei aquela madeira espessa até os nós dos meus dedos sangrarem. Fez-se silêncio no quarto, e também a escuridão.
Corri para o meu quarto, ignorando aqueles olhos mágicos a me observar. Era longe, do outro lado do prédio, e por vezes, esquecia-me até mesmo de sua forma e da minha vizinhança.
Ela não atende as ligações.
Sequer responde as mensagens.
Eu abro o meu quarto, depois de tanto tempo, e enfim vejo;
está tão bagunçado que não consigo andar.
Não sei quando vou tornar a sair.

O Dia Seguinte, Edvard Munch

Share this:

CONVERSATION

0 comentários:

Postar um comentário