Doença Comum

Acharam um papel, caneta e copo d'água por sobre a mesa. Por mais, a sala era a expressão do usual, nada ali existia que pudesse servir como atrativo a ninguém que se considerasse normal. Uma papel, caneta e copo d'água não representariam nada demais, dado esse contexto. Pra que se ponha de forma simples, vamos aos fatos: Eu morro e meu corpo desaparece. Profissionais da polícia civil cercam a minha casa, falsas preocupações de colegas da escola e vizinhos fazem parte agora do principal passatempo mental da comunidade, "por quês" vêm com mais frequência. No meu quarto, o de sempre: Pôsteres de manias adolescentes, sagas de livros e filmes imbecis, imaginários de pessoas e pseudo-pessoas que nunca tive contato profundo. Era o reino da superficialidade comum. Exceto pelo papel, caneta e copo d'água.

Não faço ideia do que fiz pra merecer morrer. Não sei se mérito é o conceito que se leva em conta pra que um evento se torna válido em relação a uma pessoa, na verdade. Frequentemente, ouvia as pessoas dizerem: " Não mereci essa nota " ou " Eu não mereço isso ". Eu acho que não merecia morrer. Morri. Morri, e o que associo a isso ainda continua sendo mérito, e o que as pessoas que estão em volta do papel, caneta e copo d'água vão pensar, é em mérito também.

Não faço ideia de quem me matou. Acho que fui eu mesmo. Eu não, não sei dizer se foi bem assim, veja: Se as pessoas reconhecessem a morte como saída, gostariam mais ainda da culpa. Pois a culpa torna a vida híbrida à morte. Assim como temem a morte, temem a culpa. E a condição pra um suicídio é a culpa. De não ser quem deveria ser, de não ser quem esperavam que fosse. De não estar lá. Eu não sei se me matei. Não fiz nada, pra merecer nada, pra ser culpado de nada e nem ser morto por nada. Mas foram encontrados papel, caneta e copo d'água.

Não sei de vão achar água no copo, mas o copo é d'água de qualquer forma. Nem sei se há tinta pra escrever ou papel pra registrar. Acharam - e eu achei - que essas coisas não importavam, porque, afinal, são pontos de vista: Eu não enxergo mais papel, caneta e copo d'água porque estou morto. Talvez pra mim, essas coisas não sejam as mesmas que pra você, e nem pra aqueles profissionais ou pros vizinhos, quiçá colegas de escola. Mas eu as expresso com os mesmos valores que você associa. Se eu disser que morri, pra mim vai ser a mesma coisa do que pra você?

Eu espero que achem o meu quarto. Mas o que eles esperam encontrar nele?  Se esperam encontrar. Quem sabe, não sei. Tudo aponta pra algo comum e ordinário, medíocre e passível de negligência cotidiana. Eu estou aqui, mas não consigo me achar. Nem você. Papel, caneta e copo d'água são as excessões, aparentemente. De todos os modos, sou incapaz. Afinal, estou morto. E sobre a mesa, encontraram o corpo.

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