Recording (3)
Aos poucos, as relações foram tecendo-se por fios cada vez mais
finos, compridos, paralelos, finitos e soníferos ; enche o indivíduo
de coisas que devia fazer e não faz, por “senões” e
“portantos”, por pretextos e desculpas. Não vejo meus irmãos há
anos, encontro-me com meu inimigo a cada manhã . A intransigência é
proposital, o vocabulário, acidental, e as fugas – românticas –
são exercício diário . Cada vez, maior, melhor, cada vez ,
estranho, sem dó, cada vez, sem rimas .
Aos poucos, as relações foram tecendo-se por memórias que não
existem, por pretensões e por barganhas . Te devo amizade, te devo
luxúria, te devo o que não posso pagar e nem dar a mim mesmo .
Minha casa é sua ; minha comida, também ; meu corpo, não menos .
De usuários, minha alma cheia, não é mais que o mais vazio dos
poços . O trivial é a marca da solidão virtual . As coisas, se
ditas repetidas vezes, perdem sentido : se vivo, repetidas vezes,
perco o sentido . Se me usam, repetidas vezes, perco o prazer . Se me
matam, repetidas vezes, exclamaria por não haver prazer maior .
Aos poucos, as relações foram tecendo-se por dedos velhos e
melancólicos . A própria relação é a desculpa pra que a mesma
exista . O próprio dever lhe concede o direito, e o próprio
firmamento é o precipício . Não poderia estar mais enganado do que
quando eu ouço a verdade : de todos os conceitos, a verdade é o que
mais lhe deixará claro de que suas propriedades não são sequer
evidentes, de que suas propriedades são mentiras . Somente o ego é
verdade, pois todo ego é pra mentiras como a verdade também o é .
Me identifico com as suas verdades porque nunca menti tão bem pra
mim mesmo .
Aos poucos, as relações foram tecendo-se como linhas de metal,
ligas de metal, barras de metal, metal líquido, metal plástico,
metal sanguíneo, metal caro, metal, metal . Metal vermelho . As
relações são córregos de ferro, são cortinas de alumínio, são
estrelas de cobre, um lixo de ouro . As mais profundas – terrosas,
alcalinas – são também as de menor valor . O cheiro de ferrugem
está por todo o lugar, e os indivíduos, estagnados, não podem
abrir seus olhos nem pra si e nem pros outros . São cidades de ferro
que dividem as pessoas, e isso é tão confortável que a minha
possui até um espelho : também não posso vê-lo . Está lá porque
a luz, essa, ainda passa distorcidada por ele, ainda passa por mim, e
só passa .
As relações já não são construções, já não são nada .
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