O Profeta - 01

O conforto da posição fetal é subitamente abandonado pelo tilintar elétrico e frio de um despertador à espreita, prontificado a atormentar, a anunciar a manhã indesejada. Os cotovelos, inchados pela preguiça,lentos se esticam, os joelhos adormecidos contorcem as pernas em tentativas vãs e de má-fé para que seu usuário se espreguice e descubra-se no dia que urge – a alvorada – a razão porquê tinha configurado o comensal da pertinência para aquela hora tão incômoda.

Não interessava, nem a ele e nem aos outros: não interessava a ninguém. Fosse ele o primeiro a levantar ou o último, o ponto não se bate sozinho e não se bate por alguém. Se achasse que iria se atrasar pro trabalho, muito bem, o despertador estaria pronto a sua disposição logo que os primeiros raios de sol invadissem seus sagrados silêncio e penumbra. Se não, ele, pronto, nem estaria.

Levanta, tua hora é essa”.

“Eu sei”.

Os pequenos pés a se encaixar no uniforme único, em estilo macacão, da fábrica de copos, plásticos e pires em geral ltda. de seu Patrício eram incomodados, perseguidos por barulhos gelados e descartáveis. Como sacos plásticos, agarravam na pele se molhados, mesmo se um pouco, e como lonas de circo, esquentavam como se o objetivo fosse assar o empregado. Ao final, um zíper, os dois braços, isso, uma encarada no espelho do banheiro, uma última frustração.

Não interessava, nem a ele e nem aos outros: não interessava a ninguém. Tinha que chegar ao trabalho antes das seis da manhã. Descobrir-se atrasado era descobrir-se despedido. Faltando, prejudica-se. Morrendo, não faz falta. Pronto, chega desses pensamentos, Fome, em seus 17 anos, tem um dia inteiro pra ainda tentar fazer que alguém se importe; impossível, mas alcançável.

Sem banho, nem desjejum. Sem café, nem almoço.
Sem sonhos, nem esperança. Ninguém realmente se importa.

+ ¬ ¬ ¬ +

Todos eles estão esperando. O ato final, o grande encerramento, a deixa para a grande glória: todas as garotas assistem, os meninos admiram, os professores não intervém, não existem mais inspetores, somente uma grande roda: olhos de todos os tamanhos e expressões, de todas as alturas e estados, estavam todos, sem distinção, sem caráter ou identidade, todos, estavam olhando pra ele agora. Esperando.

Não havia limites, não poderiam haver. E também não haveria derrotado, visto que o abismo entre as duas forças agora era bastante profundo. Em um mundo de dotações sobre força, a razão se faz na delinquência multiplicada pela astúcia. É um mundo de mais fortes? Não, mas é o dos mais perigosos.

Gula olha ao redor. Seu rosto magro, seus olhos azuis, seus cabelos íntegros, lisos e cor de folha de coqueiro morta - ou um ocre, se preferir – fitavam a multidão. Assistiam a euforia, a ansiedade, o clamor da plateia pelo circo que armara. Minutos mais cedo esse era Chambinho, não mais que rosa e indiferente pra qualquer um. Minutos mais tarde comprovaria sua validade como nada. Mas, o que interessa não é o agora há pouco ou o daqui a pouco, é simplesmente o …
Isso. Que grande presente.

Gula, 17 anos. Abre os braços, fecha os olhos. Curva a cabeça e o sorriso. Vira as costas, e os dedos dos pés; os sente, cada vértebra, cada falange.

Isso é lindo. Ele está acabado. Eu nunca estive tão bem”

É rápido, certeiro. Seu pé direito coça por um queixo, e é bem alimentado. Sua mente roça sua caixa craniana e toráxica por sangue, e é muito bem alimentada. A multidão rasga-se em exclamações ambíguas de choque e euforia, de fato, é um grande acontecimento, continua sendo um grande presente. Gula, como sempre, se safa muito bem. Gula, como sempre, é muito bem.

Oscar e Spinoza, sombras brancas e negras, respectivamente, da personalidade de Gula o seguem, conferindo se por alguma abertura poderia se mostrar menos intangível ou magnífico pra plateia, antes de o acompanhar pra fora do pequeno cerco. Sombras de pessoas o tentam tocar ou alcançar, mas ele ainda vive o grande presente. Não, elas não poderiam. Nunca.

Não é da natureza de alguém ser mais que ninguém; Não é da natureza de alguém dominar sua natureza, mas se é convencionado assim. Meu pé é a realidade. O queixo de Chambinho é a convenção. Vocês podem me chamar de natureza.”


Oscar faz que entende, Spinoza nem o faz. Ninguém mais faz, mas não falta quem vá atrás. Aliás, de "ninguéms" e sombras Gula está cheio.

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