Eu me vejo agora nos retrovisores dos carros e nos parques vazios, brincando com os brinquedos agora enferrujados.
Acabo fitando um espectro do que eu era
e me agarro a um passado que penso pertencer a mim, mas não pertence mais a mim que a todo o resto do mundo e das pessoas.
Mas agora me sinto mudado, com todo o pretérito morto às minhas costas e ao mesmo tempo com seus dedos deslizando sobre meu corpo de tal forma que me vejo entre a cruel esperança de dias melhores e a nostalgia desesperançosa a me.prender.
E fito meu reflexo em superfÃcie absolutamente imaterial.
Me vejo trancado num banheiro esperando as pessoas me esquecerem e eu possa ser livre dessa responsabilidade angustiante, de ser eu mesmo e viver os outros.
Sinto esse cheiro horrÃvel e penso ser esse o meu destino, mesmo a porta estando tão próxima de minhas mãos e minha alma tão longe de total liberdade.
Fito a textura dos lugares de forma que nunca fitei. Estou hoje mudado pois não tenho relevância alguma, mas me sinto jogado de volta ao passado por essas velhas perturbações.
No momento choro desesperadamente e nenhuma palavra não me é banal, inútil, e expressa um por cento daquilo que sinto.
Penso merecer o perdão, penso que isso não está em minhas mãos, e por fim vejo que não possuo mais autonomia que senão o perdão.
E me vejo surrado, aberto, fragilizado, de tal forma que todos me conheçam em minha pior nuance.
E não há luz mesmo nesse banheiro muito bem iluminado. Não há privacidade mesmo com tantas fechaduras me distanciando de qualquer outra pessoa.
Me vejo não vendo, me vejo sem ser visto por aqueles que se veem tão Ãntegros e seguros de si, mas que vão olhar para mim e perguntar o porquê de tudo isso.
Eu digo que não sei. E que deveria viver mais minha própria vida.
Vão dizer que eu não sei o que estou fazendo e que se importam comigo, porém sou humano tanto quanto eles e entendo o quão angustiante e miserável é o mundo alheio.
Eu sinto que nunca saà daquele banheiro. Sinto que meu corpo ainda reside desfalecido, trancado e somando-se ao mau cheiro. Vão bater na porta perguntando de mim e eu estarei lembrando da minha infância, brincando nesses brinquedos enferrujados em algum canto da minha mente.
Tudo que vale a pena em minha vida ou já está morto ou está se deteriorando na frente dos meus olhos, e eu preso na inação.
Na escuridão dessa luz azulada do banheiro, Sartre é meu melhor amigo, e todos os filósofos orientais estão lá fora apreciando o sol e a grama.
Enquanto isso, Sartre sussurra que estou condenado a ser livre, que eu escolhi me trancar no banheiro e estava fazendo minha existência ali, naquele exato momento.
Eu digo foda-se, Sartre. Essa existência é medÃocre, mesmo que rarefeita, mesmo que coordenada por minhas ações irresponsáveis, e não posso ser livre quando me prendo nessa desistência. Livre para me prender? Ora, que piada conveniente.
Penso em sair pela primeira vez quando minhas próprias palavras me levam ao choro. Sartre está tão morto quanto eu. Me levanto, consigo ver o restante do banheiro, que nunca me pareceu tão pequeno, e o mundo nunca vai parecer tão pequeno, tal como a galáxia, o sistema solar, e por fim tudo que existe.
Mas então entram no banheiro explodindo em risadas e eu me vejo chorando mais e mais.
Eu quero fazer parte do mundo medÃocre de vocês. Eu quero rir dessas coisas banais. Eu não pretendia me isolar. Me tirem daqui.
Por favor.
Eu me sinto no vaso sanitário, o perfume masculino junto do suor saem do banheiro e minhas lágrimas cessam pouco a pouco.
E me atinge como um shot de vodka, como se fosse real abandono, aqui, na marginalidade da minha própria vivência.
Estou perto de sair?
Eu quero sair daqui.
Não me vejo mais andando, não me vejo de forma alguma. Não sei mais quem eu sou.
Eu apenas me sento trancado nesse banheiro e espero.
Espero.
Espero.
Dias se passam, e nesse poço escuro pós-apocalÃptico onde me encontro, que há tão pouco tempo eu julgava ser exclusivamente o compartimento de um banheiro escolar, mas que agora é minha cova, um poço amargo de desesperança, há finalmente uma luz. Uma luz que ninguém mais verá, pois só na expectativa que criei, no niilismo que me corroeu e na queda que sofri, tamanho brilho estelar pode ser degustado, admirado, sentido...
Junto a luz, uma porta estreita se abre.
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Nu Azul, Picasso |