Pretérito Perfeito


Saí de casa às seis, como de costume
vi na rotina sofrer e se fazer a minha juventude
agora me são sobre tudo como cortumes
pelos quais padece minha solicitude

saí das rugas dos meus lençóis
para as dobras que o tempo deixara
da repressão da minha própria mente
para o linchamento da multidão.

as vozes lá de fora eram tão somente
o padecer da minha própria razão
(não há escapatória para a lida)

eu era tão Munch pra pouco Renoir
meus olhos precisavam de vida
e a pele precisava de ar.

Voltei para a casa às seis, e na geladeira
nenhum bilhete me esperava
olhei para a janela que já há muito me observava
e pensei "porra, não está perfeito."

Nada é perfeito, eu li num livro de autoajuda
porém, fiz dessa frase menoscabo, e a joguei fora
e fiz bem, pois por mais que eu me iluda
não há nada de novo a se ver no mundo de outrora.
De fato, nada é perfeito.

vi no meu celular aquelas cinquenta e cinco chamadas
e guardei-o, deixando-as mofarem e se perderem
como eu faço com minha vida desde então.

eu fiz, me fui, reservei salas nunca usadas
chamei-a pelo nome e deixei seus cabelos me prenderem
mas não consegui me apaixonar. o que faço da minha vida, então?

"porra, isso está malfeito", o professor disse
e minha vontade era de esfregar a cara do canalha na mesa
mas não foi o que fiz, por mais óbvio, e aperfeiçoei o poema.
aqui está ele, e mesmo assim, o fitei, e disse
"isso não tá perfeito."

Cheguei, atrasado, faltando dez para as sete
me fitaram com aquela absoluta incerteza
e não era aquele o meu cotidiano sistema
de sorrir para todos, de abraçar a tudo, e me dar o respeito.
não... a coisa ia mal.

ela brigou comigo como era típico, e eu me contentei em escutar
esperei que ela fosse embora, por aquela maldita porta
eu realmente não tinha mais porque insistir nela ou continuar
peguei um lápis, um papel, e escrevi "o frio da paranoia a minha alma corta..."
e aquele foi um poema que nunca terminei. ainda bem.

e não era aquele típico dia, que o blog tinha, sei lá, 50 views
não, a coisa ia realmente mal.

Acordei, surpreendentemente, às sete e meia
mas como era feriado, e não consegui voltar a dormir,
peguei o lápis e o papel e escrevi
"o calor do amor minha alma ceifa..."
e aquele foi outro poema que nunca iria concluir.
é foda.

agora sou esse velho rabugento
que pouco a pouco esquece-se de rimar
e eu mesmo me atormento
pensando num passado que nunca vai voltar.

isso aqui dá muito pano pra manga, então lá vai a anedota
eu liguei para ela, retribuindo àquelas 55 chamadas
ela atendeu imediatamente, e chorando, pediu para que eu voltasse.
e eu desliguei a gravação.

agora, entre as rugas dos lençóis, ouço, repito, e ouço
e ela já não está aqui, senão no pretérito.
dormi, ansiando algum sonho como esse novamente
ou, vai saber, simplesmente não acordar
mas não consegui nada senão um silvo, ou funesto e desprezível sussurro
"essa vida, aqui,
me é perfeita."

A Refeição do Cego, Pablo Picasso



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