Carta Deixada Após Confirmação de Suicídio

Na cena do crime, distavam-se, além do cadáver: seu vestuário, a ferramenta utilizada no suicídio e um bilhete, encontrado no bolso traseiro esquerdo da calça do agora cadáver, que revela-se como sendo uma carta suicida . Segue a seguir, seu conteúdo, conforme registrado pelo escriba oficial do gabinete do delegado P.---


“ 'Eu perdi tudo' . Poderia ser um excelente começo . Ou então – melhor – 'Perdi meu grande amor . Ela me deixou' . Ainda : 'Meus filhos faleceram e minha mulher me deixou, visto que sou um alcóolatra e meu vício a repugnava'
. Não poderia dizer isso, pois além de clichê, não faço ideia do que é experimentar tais tipos de sofrimentos . Eu não posso dizer que perdi tudo . Sempre tive tudo . Perder alguma parcela disso seria, no mínimo peculiar, pois tenho tanto – tenho 'tudo' – que afirmar perder isso procede da informação de se conhecer tudo . Sei que tenho tudo, mas nunca soube o que foi tudo pra mim .
Vocês já devem saber o que fiz, e agora, a pergunta que segue é por que o fiz . Eu não saberia te explicar em vida, com calma, e nem na morte, com pressa e caligrafia ruim . Mas eu sou um cara objetivo, vou apresentar os fatos, construir uma moral, enfiar esta porra em sua cabeça e sugerir que sou um pobre coitado e que meu suicídio é perfeitamente válido :
Eu detesto o que me cerca, inclusive, a necessidade de fatos .

Pra que se haja união, fraternidade, educação e assimilação de papéis e funções mutualísticas por indivíduos em uma sociedade, há a necessidade de uma identidade comum, de fatores que atraiam, que possam cultivar respeito . Pessoas necessitam da atração e do reconhecimento de outras pra que se sintam parte disso tudo, pra que se sintam identificadas . Meu papel é de professor, e meus alunos reconhecem esse papel . Meu papel é de marido, e minha mulher reconhece esse papel . Meu papel é de monstro, e as pessoas reconhecem o meu papel ? Seguindo o primeiro exemplo : eu me reconheço como empregado da escola, que fornece serviços a minha comunidade . Meus alunos me reconhecem como professor porque sirvo a eles . Eles assimilam as matérias porque se identificam com elas, assimilam minha fala porque é a fala deles, assimilam minha paixão pelo conhecimento porque será a deles . Agora, o segundo exemplo : Só fui reconhecido como amante, a partir da sugestão de convergência entre gostos, metas, planos . Apresentei, exemplifiquei, apliquei e provei meu caráter inúmeras vezes, tornando-me essêncial e único como indivíduo, frente aos olhos de minha mulher . Ela me permite serví-la e eu permito que ela me sirva . Eu a reconheço, ela me reconhece . Eu a tenho, ela me tem .
Se sou um monstro, é porque sou mau . Não é porque sirvo, é porque atrapalho . Não é porque fortaleço, é porque avario . Não curo, inflinjo dano . Não tropeço e sou erguido, caio por terra e lá fico .
A união se dá pela fronteira com o inimigo .
A fraternidade é a busca de opiniões sobre o inimigo .
As funções são atribuídas para o combate do inimigo .
A moral é sugerida pela a ameaça do inimigo .

A sociedade reconhece seus monstros .

Então, a vida só se torna valorosa e honrada a priori pelo cumprimento do papel do usuário da mesma frente a dinâmica social . Ela exibe que o ser ordinário, aquele que obedece e serve é a engrenagem desse sistema, o simbionte necessário, o fator que valida a mutualística entre os indivíduos . Os monstros não reconhecem isso . Os monstros são parasitas, seres não-harmônicos, seres imprevisíveis, mesquinhos, sorrateiros, à espreita e tocaia . Os monstros são os simbiontes que decidiram escapar do que lhes foi dado .
Lhes é atribuída a negação ou falta pertinente de amor . A rede nos abraça como um pai, a teia nos acaricia com ternura, nos afaga e mesmo assim dizemos não . A espreita os monstros, no centro, a aranha ; as moscas se mostram nesse esquema como exclusivo produto consumível do nosso sistema, observe :
Você resolve deixar sua filha nas boas mãos de seu irmão, vizinho ou padrinho . Quando a recolhe, a menina chora e lhe abraça, treme de saudade e agonia . Você deixa a sua filha com ele de novo . Ao recolhe-la, lá está, choro, convulsões, soluços e afagos violentos e apressados . Você a deixa outra vez . A recolhe . A deixa . A recolhe . A deixa .
A recolhe pela última vez .
Alguém é preso por estupro . Alguém é indiciado por negligência ao menor por parte de guardião ou responsável legal . Alguém vai pra cadeia, alguém paga um bom dinheiro .
Alguém fica, literal e subjetivamente fodida .
Os monstros atacam , a aranha observa, as moscas caem . A rede absorve, interpreta porém, não vê .
Os monstros, a aranha e a mosca são linha e vento . São naturais, inerentes e irreais aos sentidos . Estão lá, e não queremos vê-los .

A sociedade reconhece seus monstros;
A teia cria seus monstros, moscas e aranhas.

E tais processos são catabólicos, velozes, explosivos, homeostáticos, necessários . A teia, vazia, cheia, cega e perfeitamente insensível suporta seus fenômenos e não os aguenta . São condenadas as essências, são estipuladas as culpas, são criticadas as tendências, são removidas as moscas, são acusadas as aranhas e são temidos os monstros .
São erupções de bocas que gritam a necessidade de sugestão, que berram a implicância de instituições, que clamam pela razão pura e crítica, que distam seus medos por suas intuições que os dizem : Vocês são linho e vento, são teia .
'Não, somos sistema! Somos sociedade! Somos humanos, racionais, práticos, ideais' .
Se eu provo que não, sem provar nada, os agrido de forma a esquecer tais conceitos, mas preservá-los em mente . A metodologia da guerra implica em sua gênese e apocalipse serem racionais, impráticos e empíricos . São uma análise perfeita . São a raiva . Seus transcorreres são a oposição disso . O homem só se torna lobo do homem porque uma vez deixou de ser homem, segundo o que homem é para o homem . A teia só reconhece-se como teia após tramar contra ela mesma, e mesmo assim, não se realiza teia . Não se realiza papel, função, não se realiza nada .
Se realiza loucura . Se realiza paz .

A sociedade reconhece seus monstros;
A teia cria seus monstros, moscas e aranhas;
A guerra se torna paz.

A um olhar desapercebido, nota-se a perfeita simbiose na teia . Ao olhar mais perspicaz, observamos as funções da teia de forma separada, porém transcendente e íntegra, complementar aos indivíduos singularmente e suplementar ao coletivo . As funções se designam por mérito . Sou criador porque me permito criar, me reconheço e me reconhecem nisso, e em vista de meu trabalho, o que sou é real e satisfatório . O mesmo para um escritor, ou qualquer outro prestador de serviços da teia . Além das funções, observamos o mérito atuar perfeitamente em toda e qualquer tipo de relação intra-teia . Recebi o prêmio porque mereci ; Sou tratada como puta, porque mereço ; Sou cientista pois minhas teses merecem crédito .
Meus feitos e glórias medem a minha honra, minhas realizações, meu passado e meus sonhos próximos, meu futuro próximo e delicioso . O que eu faço honra meu mérito, o que faço é meu arbítrio, meu mérito é função de meu arbítrio .
Meu mérito é o prólogo do que sou e do que me reconheço ser, e do que me permite ser capaz de dizer que sou o que sou porque fiz, e não porque sou . Sou o que sou porque nunca fui .
A minha melhor liberdade é depender do meu mérito .

A sociedade reconhece seus monstros;
A teia cria seus monstros, moscas e aranhas;
A guerra se torna paz;
A escravidão é a minha liberdade.


Um possível extra-teia ? Impossível . Nova sociedade ? Utopia . Não há problemas, não é crítica, não é sintético, é analítico . Não é culpa de ninguém, é problema do não fazer . Mas o não fazer é o fazer prático, o não pensar é o pensar prático, o reclamar é o protesto clássico . Não adianta, os que ascendem pensam ser especiais por ascenderem, os que tropeçam porque tropeçam, os que afundam porque poderão ascender com mais dificuldade e assim se tornar grandiosos . Em um mundo de linhas e vento, os grandiosos são aqueles que se desprenderam e se extinguiram, ou aqueles que nada são, pois estar e ser fadado a viver como linha e vento é abraçar a ordinalidade . O que é ordinal é repulsivo mas tão aceitável que é ignorância ousar-se a ultrapassá-la . Ai dos que o fizeram. Monstros .
E quanto mais ao centro, menos natural . Quanto mais às bordas, mais surreal . Quanto as espirais, são linhas retas em curvas . Quanto as que observam, só ditam e não explicam, só querem máximas, e proposições auto-válidas . São fatos em mentiras, realidades em verdades que constituem-se, e o extra-teia permanece mistério porque o óbvio é bom e o novo é agradável por não sê-lo . A ignorância é a chave pra nossa toca, a chave pra alegria e loucura .

A sociedade reconhece seus monstros;
A teia cria seus monstros, mocas e aranhas;
A guerra se torna paz;
A escravidão é a minha liberdade;
Ignorância, a minha mentira real.

Há diversas dessas teias, por todos os lugares . Em meu sótão , em minhas bolsas e mochilas, em meus livros, nos alicerces da minha casa . Nas carteiras da escola, nos armários dos vestiários, nos bancos das praças .
Na face e no colo das mulheres, no tórax e costas dos homens . Estão estampadas nos olhares, nas mãos, nas falas e nos pensamentos . Há linha e vento em todas as partes . Tudo nunca foi . Nada sempre será .
A partir dessa realização, é conveniente pensar que, em face disso, qualquer um poderia jogar sua vida fora por suas próprias mãos . Eu digo que é impossível . Já se nasce disperdiçando vida, se cresce porque abrimos mão dela, o ganhar é a constante de perder . Não reconheço vida em mim, não reconheço em ninguém . Só há consumo de células, consumo de planos, de metas, de ideologias, de grandes perdas de tempo ! A vida não é rio, não é passado ou futuro : É chuva, é presente, é percepção .
A vida é a grande ilusão da sua própria inutilidade como vida . De seu próprio descarte e negligência . Pois em tudo se acha teia, sistema e teia e mais sistema e dor e teia e sistema e sistema e dor e menos, menos, menos vida . Muito menos vida . Nunca, vida .
Portanto, a decisão de me abstir de vida é insensata, já que nunca a tive em plenitude . Mas, corrigindo, a aceleração do processo de degeneração da minha vida – e este é o termo – se dá apenas pela compreensão do primeiro período dessa carta .
Me foi dada sociedade .
Me foi oferecido um lugar em sua teia, e uma identidade .
Me deram guerras por que lutar .
Liberdade de escravidão e uma tremenda ignorância .
Isso poderia ser tudo . Mas não foi, não era .

Eu podia ser mais e perdi isso, fui humilhado por tentar furar a teia e prender meus braços, perna e cabeça . Estou preso, à mercê de monstros, contaminado por moscas e sob os olhares de uma aranha que me vê suculento e uniforme . A prisão se fez real, e não ideológica . As relações se fizeram parte da teia . A ignorância era manual de fé e prática . A vida passou a ser a ilusão perfeita do se viver .
Abro meus olhos e me liberto agora . Meu tudo não era algo, era alguém . Perdi
Meu tudo não era meu mérito, era o meu ser . Perdi .
Minhas guerras eram batalhas infantis . Perdi
Nunca me houve liberdade ou arbítrio . Perdi .
Minha vida nunca foi vida, foi morte . Ganhei .

Amarro minhas cordas e linhas agora, vou pendurá-las em algum lugar alto, já em nó, vai ver, ainda vou encontrá-las . Ainda vou me matar, só espere eu terminar de escrever o seguinte :

A sociedade reconhece seus monstros
A teia cria seus monstros, moscas e aranhas
A guerra se torna paz
A escravidão é a minha liberdade
Ignorância, minha mentira real
Causa de morte : vida .”

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