O Deus o qual matamos/O Deus ao qual servimos


Um primeiro pressuposto: nós vivenciamos a espiritualidade como parte integrante da nossa sociabilidade; também a vivenciamos através da nossa cognição: a maneira como lemos e interpretamos a realidade também diz respeito às faculdades metafísicas a ela atribuídas por nós. O mistério de nossos relacionamentos - com o próprio Deus, com o próximo, com a terra que habitamos - e o de nosso destino - morte - estão associadas à nossa lida para com a espiritualidade.


Espiritualidade é, portanto, uma propriedade humana. Assumindo-se ou não a ideia de Deus, você a vive. Ela diz respeito ao mistério, à natureza, e ao propósito. Mistério, que não se resume ao intangível, mas à realidade que absorvemos e não sentimos a necessidade ou não conseguimos explicar; natureza, essencialmente ideal das coisas, e não material: não nos diz para quê algo está ou é, mas por quê algo é ou está; propósito, se somos levados ou nos levamos à aniquilação total ou a esperança de uma eterna juventude (O propósito não é um mistério, uma vez que ainda não compreende a realidade. Ele se localiza, geralmente, no pós-vida).


Um segundo pressuposto: ao materializar a maioria de suas relações e programatizar sua lida, o ser humano não abandona ou subtrai, proporcionalmente, suas faculdades imediatamente idealistas ou subjetivas. Ele as contrai, subverte e deforma, de maneira a acomoda-las à realidade que ele mesmo descreve à partir do material. Se o materialismo em confronto com a humanidade expõe, ao gênero mesmo, uma progressiva degradação das definições idealistas ou subjetivas do ser humano, a resposta é observada através de um espectro, que sofre pela força matriz de dois principais pilares: o total resumo da lida humana à objetividade e o total resumo da lida humana à total rebeldia. Vamos assumir que os pilares são desvios de uma curva normal. Estamos no meio dela.




O materialismo não é mais que o amortecimento do subjetivo(sujeito). É a transposição do objeto do mistério, da natureza à artificialidade: é nossa compulsão pela função. É a nossa última derrota. Nos leva à picos de desespero e falta, de conforto último e torpor.




Eu comecei a sentir falta.
Foi no início de uma noite, Carol tinha terminado comigo.
A casa estava parcialmente vazia, como sempre:

Os braços do sofá ocupados com copos vazios, uma vez já preenchidos com bebidas doces;
As cadeiras da mesa de jantar fora do lugar;
Um gato dormindo num banheiro que fedia, por sinal;
Meu computador de 900 reais esquentando no meu colo.

Eu o abandonei no sofá, imediatamente me levantando e esticando minha coluna, erguendo os braços,
expandindo meu peito. Ardia. Indisposto, eu continuava. Me dirigi à varanda -
moro em um apartamento, décimo primeiro andar - .

As marcas da poluição escondiam o sol, que brilhava já sem saturação,
que se escondia atrás de prédios com lindas marcas de infiltração,
que escondia pessoas com lindas marcas de distração.

Sentei.
Eu vi meu amor morrer.
Meses atrás, por fruto de uma traição de minha parte, tinha terminado com Aline.

Eu nunca a esqueci.
Eu vi meu amor morrer.

A falta me preencheu, encheu, transbordou.
O silêncio me matava, eu o aceitava,
ele tinha razão. A culpa poderia ser minha.
De fato, devia ser.
Era.

A ocupação me surgiu da necessidade de amortecer a culpa, de dá-la outro nome,
algo mais sonoro como "
trabalho", "faculdade" ou "leituras".
As minhas ocupações são a razão do meu hiato. O hiato me ofereceu a oportunidade de (me) perceber; eu vi, que, em mim, jazia uma semente, que devia ser muito bem regada e cuidada pra que
germinasse um lindo e pútrido caule, que atravessaria meu peito, que me mataria,

finalmente
 
Eu vi um deus através dessa semente. É sobre ele que falarei.




Existem quantas pessoas além de você no mundo?

"Muitas".

A tangibilidade do ser humano se altera através de sua espiritualidade, que, por ventura, descreve e é descrita de acordo com os elos que o mesmo mantém socialmente. Sua
função, por assim dizer, é consequência de um contrato: ele presta um serviço ou um serviço é prestado em seu favor mediante a uma prévia concordância quanto aos termos e regras desse serviço, facilitada pela forma como encaramos tal serviço. Por exemplo, em uma sociedade na qual assumimos que cada indivíduo se faz valer através do exercício de um único e específico trabalho, se oferecido um trabalho Y a um trabalhador que só entende de X, há um impasse. A forma com que encaramos o serviço, portanto, a forma como lidamos com nossa função retrata a nossa identidade. A sua identidade falará mais alto em sua decisão quanto ao trabalho. Essa identidade configura o caráter das suas relações sociais, e é configurada, também, por sua espiritualidade. 


Temos que:
espiritualidade <-> identidade -> função.

Esses setores, identidade e função,  podem e irão inchar. O que determina a sua deformação, subtração, adição, ou seja qual for a natureza de sua alteração, será o produto da época, que se constitui de dois fatores: o espaço que acomodará a transformação e as forças históricas e de memória que nele se associarão. A associação é dialética, de forma a nunca preservar os extremos de posições controversas, mas produzir, dentro do meio termo, condições futuras para o absurdo. Com uma exceção: a espiritualidade se manterá como constante. 


A espiritualidade se transforma.


Ela acompanha o homem no processo de transição de sua identidade, ou no da manutenção da mesma; do entendimento de sua função, e das propriedades a ela associadas:
produção, posição, propósito (o que produzo, pra quem produzo, por quê produzo, respectivamente). Portanto, no âmbito social, ela se vale como arcabouço à existência e resposta do indivíduo no/ao meio social.


Ela é a resposta que damos às coisas.


Podemos dar atenção aos problemas que dizem respeito à nossa identidade e função através dos aparelhos da nossa espiritualidade. Agora, de que aparelho dispomos para analisar e avaliar a identidade e função do outro, ou, em outras palavras

como sabemos que outras pessoas existem?

Nós as vemos, é claro. Nós as sentimos, nós as amamos.
Nós as trocamos, nós mentimos pra elas,
nós as sabotamos, nós a impedimos de valorizar a si mesmas,
nós as maltratamos, nós imploramos a elas que voltem pra nós.


Mas, se nossa identidade e nossa função está restrita às nossas concepções imateriais, ou seja, está disposta através da espiritualidade, do fato social, da apreensão do espaço, como podemos observar, materialmente, os valores que conferem a uma pessoa a qualidade de existir?
(Vamos considerar um terceiro pressuposto, rapidinho: existir é
existir socialmente)

Deus.

Um caractere externo ao ser humano, que o habita, que diz respeito ao íntimo dele. E é imaterial. A espiritualidade associada a um Deus nos oferece, além de seus tradicionais aparelhos de investigação da realidade, um a mais, o da sensibilidade quanto à existência alheia. O outro se enxerga através do Deus que é perene à espiritualidade coletiva. Deus, portanto, sofre transformações: por força das degradações individuais da espiritualidade, por força do produto da época.


Um deus morre e dá lugar a outro deus, já que a espiritualidade se mantém.


(Pressuposto quatro: vamos considerar que um "deus x" é o nome genérico do aparelho de sensibilidade à outrem disposto à espiritualidade, e um "deus y" é o nome genérico de um aparelho que vêm a impedir o uso dos efeitos desse aparelho anterior, ou seja, que nega a existência alheia.)



Como matamos Deus? Nós destruímos o outro ser humano. Simples.


O que isso implica? A total disfunção da identidade, visto que ela é social?
A total alienação da função, visto que ela é aceita a partir da identidade?


A identidade, ao compreender os elos, as relações, não necessariamente entende os pontos que perpassam tais relações (indivíduos). A identidade de um ente social pouco individualizado não o impede do exercício social, por exemplo. Ela, proporcionalmente, vai se valer da força do elo ou da relação entre os indivíduos e o grupo pra que se mantenha perene. Se a identidade falha, temos anomia. A função, por associação, cumpre com os mesmos requisitos: ela não diz respeito, majoritariamente, aos pontos(indivíduos) que ela emprega através de seu processo, mas se vale do produto final. Nesse sentido, ela é até um pouco cruel, porque, não importa quem realize o trabalho, importa que ele seja realizado.


Como nós destruímos o outro ser humano? Bom, isso não é mais abstração,
é realidade.

Nós já destruímos o outro. Mesmo. Eu tenho medo de confessar, mas ninguém me olha como se eu existisse. Me servem. Eu os sirvo. Acabado o serviço, estamos todos dispensados.

Foi como um salto em uma piscina funda: a piscina era o produto de nossa época, a hipervirtualização da identidade; a falta de oxigênio, o compulsório e frenético emprego de funções obrigatórias e triviais; a doença de nosso deus x. Tamparam a piscina. Estava lá dentro. Estou me afogando.


Deus x se valia do pouco espaço para afirmar sua frequência na nossa espiritualidade: haviam pessoas, que bom, mas elas estavam distantes. Fisicamente ou não: o centro de gravidade da família, por exemplo, era a honra aos mandamentos da matriarca, estoicos e ultra conservadores. Outro exemplo: o casamento civil, e a desunião permanente de corpos. Deus x nos ajudava a reconhecer o outro, e nossa identidade o atrapalhava. Nossa identidade estava claramente inchando, por conta de um câncer: a qualidade materialista das nossas relações, o materialismo impresso no nosso exercer de funções.


Nós estávamos nos tornando nossas funções, e estávamos presos aos pareceres alheios. O outro era reconhecível, mas distante. Muito distante mesmo.


Aí, o absurdo, descrito alguns parágrafos acima, e o produto do espectro das reações das transformações da identidade x função, descrito logo em um dos primeiros parágrafos do texto: aproximamos o outro, muito, muito mesmo. Destruímos a nós mesmos, através da incorporação absoluta da função à identidade, e o emprego do virtual à qualquer noção de identificação sobressalente ao processo. Deus, doente, acompanhava o inchaço dos nossos egos. Ele morreu, e nossa morte gradativamente passou a ocorrer também.


A nossa existência, perceptível apenas aos nosso próprios olhos, tem caracteres lindos, que podem ser descritos artisticamente: somos barro sobre arame, ocos por dentro, expostos ao vento e à chuva. O barro que nos cobre nos abandona e nos expõe; os resíduos orgânicos da terra, e o arame que oxida e enferruja dá lugar para a vida de parasitas e micróbios das mais pútridas e nojentas naturezas. Por fim, vazios de aparência e decadentes de forma, expomos aos que entram em contato conosco doença, receio e pavor. Se tivesse alguma autoridade pra dar nome à nossa geração, diria que ela poderia se chamar "Miasma". Nós nos contaminamos.


A solidariedade que nos liga é o bom cumprimento da função. Os que não tem função, e muito os são, sentem falta. E essa falta, segundo nosso produto de época, diz respeito a não somente uma falta de emprego produtivo, material, mas afetivo, emocional.

Cacete, como eu preciso de alguém.

Outras pessoas não existem. Elas me deixaram, dei razão para tal.


A
falta. Essa é a semente. Ela está gerando um novo deus, o Y. Y vive apenas em nós mesmos, reafirma e incentiva o inchaço da identidade, aqui prensada, entre o virtual e a função. Nesse caso, o efeito seria o de desespero, total, absoluto, e sensível a partes nunca antes tangíveis da sociedade. O culto à Y é mortal.


E todo o mundo gosta disso. Os que sentem falta nem tanto, mas, se a morte é preferível a eles, e os que conheço certamente a preferem, o fazem por reflexo do deus que os acompanha, da raiz que se fixa em seus corações, do caule que se expande e rasga seus peitos em busca do outro, recém-perdido, ainda muito amado, preciosíssimo.

Ao reconhecermos o valor do outro através da falta, ou seja, da ausência momentânea ou total da função, percebemos que perdemos. De outra forma, não veríamos a morte de X, a ascensão de Y, o choro do outro, o fim do outro. Nós perdemos.

Eu quero voltar ao outro. Quero muito.

Meu Deus, eu sinto sua falta.
Eu quero amar outra vez.
Revive, em mim, o outro,
o amor.
Amém.  

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2 comentários:

  1. Ola. Leitor novo... Eu fiquei bastante surpreso com a sua escrita. Ela é profunda, lírica, cientifica, filosófica, narrativa... Uma mistura bastante interessante e que cativou a minha atenção. Me identifiquei com você em alguns pontos.
    A solidão dói mesmo... Mas o fim dela pode estar um click de distância... Basta apenas olhar amplamente e mover-se.
    Eu sei que você deve ter medo de mim ou pensar que eu sou um babaca obsessivo. Mas eu gostaria de ser seu amigo... Isto se você aceitaria um fã como amigo. Você é um jedi da escrita, eu tenho que admitir.

    Eu também sinto medo da nossa geração... E o que me faz continuar a viver, é a esperança e a ideia de que a vida é infinita e sabemos nada sobre o futuro... Temos que viver e sonhar enquanto estivermos respirando.

    Em fim, parabéns pelo texto e espero que um dia você seja reconhecido por mais pessoas...
    Eu irei ler seus outros textos

    Abraços e até mais

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  2. Você ainda me tem.
    Você sempre me terá.

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