Calígula


- Escola pública é isso aí. Exigir demais, oferecer muito pouco. Querem melhores professores? Sejam melhores alunos.

Um silêncio amargo encobre a todos. É possível ouvir uma torneira pingando no pátio logo abaixo, agora.
- Quem – uma voz feminina e ardida corta o silêncio como uma navalha fina – é você para julgar?
- Quem é você para julgar? – outra voz, quase idêntica, repete segundos depois.
- Quem é você para julgar? – agora, todos repetem a mesma coisa em uníssono. Uma derradeira comoção é iniciada, sem que ninguém se levante de suas cadeiras de plástico.
- Quem... Sou eu? – meu rosto deforma-se num meio termo entre um sorriso largo e uma expressão horrorizada. 
Bem, agora tenho total certeza: a mentira pela qual eles vivem e discutem ainda é muito mais confortável que a verdade gélida e crua. 

A verdade é mais tolerável e irá perdurar.
A ilusão de que um dia irão estudar, entrar numa escola técnica e se tornar pessoas com um futuro é como uma religião.
Mas, bem, quem é você para julgar afinal? Penso. Mude a si mesmo, deixe-os apodrecerem.
Que ótimo professor tu serás, hein? Responde uma segunda voz em minha mente.

Uma daquelas pessoas havia gritado com a professora, a chamando de incompetente e negligente. O que houve, na verdade, foi uma súbita afeição da pessoa pelos estudos, uma vontade súbita de mudança. Isso é valoroso, no entanto, não é algo a se engolir a alguém que foi constantemente humilhada, isso é, a professora dessa sala.

Algo invisível a minha face: o turbilhão de pensamentos pelo qual estou passando. Ninguém o vê, ninguém os percebe, porque estão pensando nos meus argumentos babacas e na minha cara de orgulho esmagado, mesmo que a questão aqui não seja orgulho: é estar certo ou errado.
E estão todos errados. 
A comoção impede que percebam isso, até que enfim, a coordenadora, que está aqui na sala sei lá porquê, resolve se manifestar. Diz que o que eu disse é verdade – temos que nos autoaperfeiçoar antes de criticarmos os outros.
- Não foi isso que eu quis dizer – digo com os lábios – quis dizer que são um bando de hipócritas varridos, puta merda. – cruzo os braços e esfrego minhas costas na parede. Vitória. 
- Mas de um jeito ou de outro, irei conversar com a professora de matemática – a coordenadora continua dizendo. – Quero solucionar o problema, e sem chiliques. Não adianta nada reclamar, fazer abaixo-assinados e coisas assim, se não formos pacíficos.

- Abaixo-assinados? – digo, num tom que apenas a garota sentada a minha frente possa ouvir, e caímos na gargalhada. 
Ela, e somente ela, me entende nessa situação.
A coordenadora nota a risada, e não gosta disso. Diz que o assunto é sério, ninguém está contando uma piada.
- Ninguém está de brincadeira – diz a menina do quem é você pra julgar? do outro lado da sala. 
Qual foi? 
Quando foi a última vez que alguém discordou de você?
Estão todos vibrando. Todos são meus inimigos agora, porque todos sabem que estou certo, afinal de contas, mas não gostam disso, porque a verdade é dolorosa e fria. Mas dói menos se a aceitarmos, não é?

Há uma pessoa que não é um inimigo – a garota na minha frente. 
Ela sim me entende: está vermelha de revolta. Se pudesse se juntar ao debate, se juntaria, mas é muito tímida. No entanto, não lhe falta ira. Não lhe falta insatisfação. No fundo, ela é como eu, a diferença é que tem um par de seios e um volume a menos na pélvis.
Diz: ela disse que você é estúpido. Dá para acreditar?
- Quem, exatamente?
Ela diz que é a segunda garota do quem é você para julgar? Estúpido, ok. Eu não crio a verdade, apenas a trago. Eu sou o Messias dessa sala, amigos, mas vocês são todos hereges. Deviam ir para a fogueira, todos.
- Estamos entendidos? – a coordenadora diz. Bem, agora vejo: ela estava falando particularmente com o grupinho do outro lado da sala. O lado soviético da guerra fria.
Penso em Freud. Acho que no fundo aquelas pessoas querem chorar, espernear, e gritar, e o fariam se não fosse vergonhoso. Imagino que sejam que nem eu, a diferença é que negam: negam que precisam de um empurrãozinho para estudar. Negam que algo os impede de serem pessoas melhores. E eu, apesar de não conseguir, sou um emblema dessa luta para eles. Porque sou diferente deles, completamente diferente, mas a diferença na verdade é uma só: eu não resolvi negar meus defeitos.
Sei que sou um completo babaca.
Sei que sou ríspido.
Sei que sou folgado.
Sei que talvez sempre esqueça a fórmula de Bhaskara.
Mas não atribuo isso aos professores, pois é problema meu. Meu! E eu não nego isso.
Essa é a diferença principal.
- Estamos entendidos?
Sim.
Sim.
Sim.
Sim – todos dizem em uníssono.
Estamos mais que entendidos.
Então, ela sai, e o silêncio vem rápido num sopro, até que alguém se levanta, e aponta para mim.
- Quem você pensa que é para falar assim com a gente, filho da puta?
Eu não entendo, eu simplesmente não entendo. O rapaz está gritando.
- Então você quer ser um professor, é? Você acha que vai mudar alguma merda se for professor e quer descontar sua frustração em nós.
Ele tem cabelo raspado. Um pequeno gramado negro na cabeça, orelhas furadas, e uma porção de seu lábio inferior é dobrado para frente. 
Ele se aproxima. Eu me levanto.
- O que você q – ele me dá um soco no rosto.
Meu ombro colide contra a parede, mas isso me serve como um impulso. Desvio, sem querer, de outro soco, que acerta na parede. Meu pescoço beija o seu cotovelo, e eu, sem notar, sorrio. Agarro seu braço e o puxo para o lado, ele se desequilibra, com o calcanhar roçando na perna de uma cadeira, e cai, me trazendo para o chão.
Mais um soco: esse acerta meus dentes. Sinto meu aparelho fixo se desprender.
Nunca sorria enquanto briga, penso. É a voz angelical.
Vamos, mete a porrada nesse infeliz, está em cima dele. É a voz diabólica.
Vamos, espanca esse bosta até a morte. São ambas as vozes.
Minha pélvis está esmagando a barriga do delinquente. Talvez eu esteja tendo uma ereção, mas não consigo ter certeza.
Só tenho certeza que um soco é dado de cada vez. Os intervalos de tempo são gradativamente maiores, e os socos vão ficando mais desajeitados. O cara parece ter desistido de lutar, mas ele agarra minhas costelas. Agora ele sabe que é possível sentir minhas costelas numa boa – sou quase um anoréxico.
Um soco.
Mais um soco.
Outro soco.
Para, cara, ele tá desmaiado já!
Um soco de gorjeta.
Um soco de juros.
Um aumento de salário.
Minha mão está suja de sangue.
Para, cara! Um braço forte me puxa. É um dos agentes escolares.
Estou sorrindo. Estou rindo e suando.
Dos meus olhos saem lágrimas de alegria.
Eu olho para todos: todos estão assustados. Talvez porque pensavam que eu ia apanhar. Talvez porque não previam uma briga naquele exato momento.
Talvez porque meus dentes estejam vermelhos.
O agente escolar me puxa pelo braço até a diretoria. Sinto o cheiro de horror de todas aquelas pessoas.
Eu sussurro, embora ache que queria ter gritado:
- Quem são vocês para julgar?
Olho para trás pela última vez antes de ser arrastado para fora da sala. A garota está lá, no mesmo lugar. Uma pequena gota de sangue respingou em seu pescoço pálido.
Ela desvia o olhar quando nota que estou olhando.
Ela queria ter feito isso, penso. Ela queria socar alguém.
Ela me entende muito bem.

A torneira do pátio ainda pinga, junto com o sangue em minha boca. 


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