Liberdade e Aberração

Não é surpreendente que, num mundo onde as pessoas vivem presas dentro delas mesmas, a liberdade seja um conto de fadas, um delírio. Uma religião e uma conduta a ditar nossos passos. Um paradoxo. Nosso deus.
Sinto-me preso por cordas finas e invisíveis. Sinto que cordas tênues prendem minha cabeça nos telhados das casas, de tal forma que eu sinta a obrigação de estar aqui o tempo todo e estar em tantos lugares que eu não poderia estar há tantos anos atrás.
E que isso tem liquidificado minha mente, que mesmo não tendo saído do lugar, estou tão longe da minha família, dos meus amigos e de mim mesmo.
E por mais incrível, eu tenha algo a dizer, mas tendo em mente que qualquer coisa que eu diga é como uma apologia, é como o que qualquer Sócrates diria antes de beber da cicuta, é como algo que será grafado num registro póstumo.
De um jeito ou de outro, há algo a ser dito.

Saiba lidar com os pelos; saiba lidar com o que é inerente ao ser humano.
E o que é mais inerente ao ser humano? Os pelos
ou essa ânsia paradoxal e intrigante por viver mais e mais?
O motivo pelo qual se joga a escopeta no chão da sala.
O motivo pelo qual se abandona o canivete a flutuar na banheira.
O motivo pelo qual se vomita os remédios e a bebida.
Esse desejo incessante. Essa louca intenção.
Por que você ainda não se matou?
Ora, por que não possui raiva deste egoísmo das pessoas que te tiraram do conforto do útero de sua progenitora?
Que tão cedo te estapearam e te fizeram respirar um ar que corta feito lâminas e é como gelo seco.
Que posteriormente lhe dizem que você mereceu toda essa desgraça.
Que depois lhe dizem que você precisa passar por tudo isso.
Que mais para frente lhe dizem que isso vai passar.
Eis uma mentira sublime. Nada passa. Ao menos, é uma loucura que se tencione passar  tudo se absorve.
Tão cedo mentem para você acerca de como as coisas funcionam.
Ora, por que teria que saber lidar com os pelos?
Por que teria de saber lidar com relacionamentos?
Por que teria de saber falar em público?
Por quê?
Por que você ainda não se matou?
Faça essa pergunta a si mesmo. Não em tom retórico, mas sim em tom de verdadeira dúvida.
É verdade. A resposta não emerge da mesma forma que emergem paliativos, convenções facilmente destruíveis, nas quais querem que você agarre firmemente.
Ela virá de dentro e de lá não poderá sair, mesmo que tente forçar a barra. Só você saberá.
Do mesmo modo que, nesse momento, só eu sei. E mesmo essas passadas quatrocentas palavras não são o bastante para expressar.
Ora, saiba lidar com os pelos. Qualquer pessoa medíocre o faz.
Ame como os medíocres amam.
Beije como os medíocres beijam.
Abrace o que os medíocres abraçam.
Corra pelos campos esverdeados ou pelos asfaltos negros, tal como os medíocres o fazem.
Seja medíocre, como todo mundo também o é.
Veja como os que falham em ser medíocres caem ao seu redor. Veja como os que são mais do que medíocres não merecem a comida que comem.
Saiba lidar com os pelos, que não há nada de desumano nos pelos.
Talvez a única coisa desumana, dentre milhares de outras coisas que chamam de desumano, seja a despedida.
Que não há nada de mais indesejável que o desapego, nada que torture mais que uma liberdade sem, por assim dizer, um seguro de vida. Mas quando há prazer, não há nada mais confortável que a dor. Ora, diante da mais torturante desilusão, não é rara a reação de encolher-se e buscar afago na dor que te corrói.
Não. Isso ainda não responde.
Saiba lidar com o que é inerente ao ser. Entenda que não há nada que possa ser vivido que não seja maior com a eterna dor que sente.
E ela será de fato eterna. Estará ao seu lado até que enfiem seu corpo num caixão, ou que queimem seus restos mortais e os guardem, e você se perguntará, constantemente: por que eu ainda não me matei? 
E não há nos livros de autoajuda nenhuma resposta para essa sua questão. Não há na filosofia nada a não ser paliativos para essa pergunta. Não há nos calmantes nada senão um frágil afastamento do abismo que têm se tornado sua vida. Mas veja que é possível tocar na frágil porém presente esperança que, da mesma forma, te afasta do fundo do poço.
Aquilo que te afasta desse veneno apodrecido.
Que lhe faz abandonar a forca manualmente feita e pendurada no telhado do seu quarto.
Que lhe faz descer do teto do prédio de não sei quantos andares.
Ah, como é paradoxal e insana essa intenção...
Que é possível abraçá-la e senti-la. E você verá que não precisa responder a mesma pergunta.
Mas, questione a si mesmo; não em tom retórico, mas em tom de verdadeira dúvida...
Por que você ainda não viveu?

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